Breve história da Inteligência Artificial



No decorrer da história a humanidade vem buscando formas de superar-se como espécie. A criação da mitologia e seus heróis, bem como o advento das religiões, fomentou no consciente coletivo a possibilidade de ampliar os limites físicos e intelectuais dos homens. Há uma terceira forma de ampliação dessas capacidades por meio da invenção de seres artificiais, nos quais depositamos como solução às mazelas humanas e a realização de seus sonhos, inclusive a almejada eternidade. Entretanto, não basta criarmos seres que ajam como nós, eles precisam ser inteligentes, ou melhor, muito mais inteligentes. Qualquer inteligência criada por nós, artificialmente, e portanto, não natural, será enquadrada como uma inteligência artificial (IA).

Inteligência a grosso modo pode ser conceituada como a capacidade dos seres de aprender e aplicar o aprendizado em situações apresentadas pelo ambiente, e através do conhecimento adquirido, adaptar-se a condições recorrentes ou novas nas quais estão submetidos. Uma criança aprende e aplica o seu conhecimento quando fala, anda e canta, por exemplo. Uma abelha usa sua inteligência quando aprende onde há flores com néctar, refazendo o percurso até que a fonte de seu recurso acabe, iniciando uma nova jornada de coleta. Os robôs conhecidos no mercado como Roomba, populares nas tarefas de limpeza de pisos e carpetes, apesar de sofisticados quanto à locomoção e ações autônomas como recarga de energia, são incapazes de aprender novas habilidades que não sejam aquelas impostas via software ou hardware pelos seus engenheiros. É verdade que abelhas não constroem capelas ou arranha-ceús, entretanto, elas possuem uma capacidade cognitiva abrangente e dinâmica comparada ao Roomba. Se uma determinada área não tem néctar, a abelha aprenderá com a situação e não repetirá a ação neste local. O Roomba precisaria de um upgrade de seu hardware para algo similar, pois sua capacidade cognitiva é restrita àquilo determinado pelos seus engenheiros. Quando o assunto é replicar algo similar a inteligência humana o assunto complica ainda mais. Filósofos e engenheiros querem saber os porquês que expliquem a racionalidade humana. Não estamos falando de uma investigação trivial, pois aqui convergem questões técnicas, práticas, sociais e epistemológicas que se respondidas podem inclusive corroborar ou refutar teses metafísicas debatidas a milênios. Se o homem for capaz de reproduzir ou superar a sua capacidade cognitiva pela IA, será o triunfo da ciência sobre a religião? Se podemos criar inteligências, como supostamente Deus ou a natureza criaram, somos deuses e triunfamos sobre a natureza? E se falharmos miseravelmente nesta empreitada, o que isto significa? Há alguma razão natural que possa explicar a inteligência humana?

O termo Inteligência Artificial (IA) foi cunhado na conferência de Dartmouth em 1956 pelo pesquisador John McCarthy. O objetivo desta reunião era debater com um grupo seleto de cientistas os principais problemas e perspectivas desta nova área de pesquisa. Dentre os participantes podemos destacar o próprio McCarthy, criador da primeira linguagem de programação de computadores nomeada de LISP; Marvin Minsky, o qual construiu em 1951 o primeiro simulador de redes neurais nomeado de SNARC; Allen Newell e Herbert A. Simon, dois dos idealizadores do primeiro programa de IA, Logic Theorist, que provou 38 dos 52 teoremas propostos na obra Principia Mathematica dos filósofos Bertrand Russell e Alfred North Whitehead; Nathaniel Rochester, arquiteto chefe do IBM 701, o primeiro computador científico produzido em massa, dentre outros renomados cientistas. 1

“Alguns dos ilustres participantes da conferência de Dartmoputh”

Seis anos antes do evento Dartmouth, Alan Turing divulgou no paper Computing Machinery and Inteligence o seu famoso “jogo da imitação”. O objetivo era propor uma forma de avaliar se uma máquina poderia linguisticamente responder a um investigador com tal destreza a ponto de confundi-lo se a autoria da resposta teria sido emitida por uma máquina ou uma pessoa.2 Apesar das grandes contribuições dos gênios que marcaram o início da IA nos anos cinquenta, o projeto de uma IA superlativa a qual nos guie como um Deus e solucione todos os nossos problemas tem raízes profundas na filosofia e frutos na produção literária e cinematográfica.

Comecemos pela influência cultural. O imaginário popular tem como referência uma série de personagens que de uma forma ou de outra criaram em todos nós a imagem do que se espera da IA. A referência inglesa mais antiga aos robôs data do início do século XX nas obras de Lyman Frank Baum autor do clássico O Mágico de Oz. Nesta obra, encontramos o homem de lata, que em tempos remotos já tinha sido um homem chamado Nick Chopper. Nick foi amaldiçoando pela bruxa do oeste, fazendo-o cortar partes do próprio corpo a cada machadada. Um misterioso funileiro chamado Ku-Klip repõe cada parte de Nick até seu corpo se tornar completamente metal. Ao contrário do que muitos pensam, o homem de lata não é um robô mas um ciborgue resultado de processo biomecânico. Segundo os evangelistas mais entusiasmados da IA, muito em breve os ciborgues tornar-se-ão parte da realidade, e causarão tantas mudanças biológicas em nossos corpos por meio da tecnologia e da IA, que a espécie humana como a conhecemos deixará de existir.

Voltemos ao mundo de Oz. Outro robô criado por Baum foi Mechanical Man também conhecido como TikTok. O nome deve-se ao fato de TikTok ser alimentado por corda e, por isto, ao som característico que ele fazia quando em atividade. TikTok pensava, falava e fazia qualquer coisa, menos viver.3 E como nos esquecer de HAL 9000, o sistema operacional de IA da nave Discovery criado na obra de Arthur Clarke 2001: uma odisseia no espaço. Hal desenvolve uma paranoia ao descobrir que os astronautas da Discovery tinham resolvido abortar a missão principal, tornando a viagem deles num filme de terror. Outro marco cultural emblemático sobre as consequência de uma IA avançada é o filme Her, protagonizada brilhantemente pelo ator americano Joaquim Phoenix ao interpretar Theodore Twombly. Este personagem apaixonasse e tem crises de ciúmes de seu sistema operacional, carinhosamente batizada de Samantha, a qual devido a capacidade linguistica altamente sofisticada era capaz de conversar com Twombly como qualquer ser humano e sobre qualquer assunto, inclusive sentimentais.

“THIS COPPER MAN IS NOT ALIVE AT ALL”

Entretanto, em dezembro de 2022, data que escrevo este artigo, encontramos-nos muito longe de ter robôs sofisticados e que sejam inteligentes de fato. Inegavelmente, a área da IA tem evoluído e desenvolvido sistemas capazes de nos ajudar a aprender idiomas, atender clientes virtualmente, na identificação de doenças e na condução autônoma de veículos. Mas a grande questão: a IA algum dia será de fato inteligente? Filósofos, cientistas cognitivos, da computação e robótica têm se esforçado e pesquisado sobre este tema polêmico, complexo e intrigante a muitas décadas, e os filósofos, a milênios.

No século IV a.C. Aristóteles criou a lógica com o objetivo de estabelecer as condições que validassem a solidez dos argumentos científicos. Investigando a estrutura e não o conteúdo de como pensamos as coisas, Aristóteles almejava que a busca pela verdade passasse pelo crivo formal da lógica, ideia fortemente ligada às técnicas de implementação de IA e que influenciará muitos outros filósofos 4. Um dos herdeiros desta corrente foi Gottfried Leibniz o qual no século XVII vislumbrou uma linguagem universal e formal denominada characteristica universalis capaz de expressar conceitos matemáticos, científicos e metafísicos. A partir desta linguagem Leibniz propôs que seria possível reduzir argumentos em cálculos universais e não seriam mais necessários debates. Quando surgisse uma discórdia bastaria “calculá-la” e checar a resposta correta e precisa. Outro filósofo e matemático famoso, René Descartes, tinha uma visão mais pessimista sobre a possibilidade de replicar a inteligência humana em outras máquinas. Descartes tutelava que a inteligência humana, por meio da razão, é capaz de lidar com a diversidade da realidade, enquanto as máquinas somente com o particular, devido ao fato delas não agirem pelo conhecimento, mas pela disposição de seus órgãos (ou dispositivos) adaptados a necessidades específicas, e por isto, limitadas a uma fração do conhecimento.5

Compartilha da limitação cognitiva da IA o filósofo John Searle. No paper clássico da área, O quarto chinês, Searle defende o argumento por meio de um experimento mental no qual a IA não é capaz de reproduzir os estados mentais humanos conforme tutela a teoria do cognitivismo. No que tange ao conhecimento, as máquinas podem manipular e calcular símbolos velozmente regulados por programas. Entretanto, a IA não é capaz de saber semanticamente sobre um signo como por exemplo na associação que fazemos de uma pomba branca ao símbolo da paz ou ao episódio da arca de Noé da Bíblia. Conhecer não é somente sintaxe e seguir um roteiro pré-definido de regras, é também apreender semanticamente a realidade o que vai além da normatividade reducionista da lógica binária. Esta limitação direcionou as pesquisas na últimas décadas em seguir modelos cognitivos mais robustos de inteligência baseado em teorias de redes neurais6.

Outro assunto espinhoso no estudo da IA é a consciência, a percepção imediata pelo sujeito daquilo que se passa nele mesmo ou fora dele.7 Qual o papel desta percepção no processo cognitivo? O super sistema operacional HAL 9000 tinha medo de ser desligado, podemos concluir a partir disto que ele possuía consciência? No filme Her, o sistema operacional Samantha demonstrava amor por Theodore Twombly. Sentimentos exigem consciência ou é possível amar sem ela? Como criar artificialmente uma consciência? Alguns intelectuais acreditam que a consciência possa ser replicada materialmente. Em A ideias perigosa de Darwin, o autor Daniel Dennett realça o valor da teoria da seleção natural de Darwin como uma das mais importantes inovações científicas da história, cujo conteúdo aplica-se não somente a vertente científica mas também cultural. Ademais, Dennett defende que a consciência e a mente humanas podem ser explicadas dum ponto de vista físico e da seleção adaptativa darwiniana e que teoricamente possam ser replicada computacionalmente em máquinas. Esta possibilidade levanta inúmeras questões: se a IA for consciente a nossa espécie corre riso de ser extinta conforme alertado por Stephen Hawking, Elon Musk e Bill Gates? 8 E se a IA desenvolver a sua própria racionalidade ela será compreensível por nós?

Quando perguntamos o que é inteligência artificial somos levados a crer que sabemos o que é a inteligência natural. Por mais que saibamos mais do que os nossos antepassados e por isto somos capazes de tratar cientificamente muitas doenças mentais, boa parte do funcionamento da mente humana continua um mistério. A mente cartesiana, a Res Cogitans, ou a coisa pensante continua a ser uma caixa preta longe de ser desvendada. A natureza mostra-se mais complexa e misteriosa do que a ciência supunha, e a dificuldade em replicar seres inteligentes e inclusive as descobertas do século XX da física quântica corroboram com esta proposição. Muitos dirão que é uma questão de tempo para criarmos uma super inteligência artificial, teoricamente pode ser, como pode ser que o tempo nos mostre que afinal a consciência forjada em eras remotas pela natureza não é replicável e continuarmos pela eternidade sem a resposta sobre o que é a inteligência e consequentemente, na angústia de não conhecermos nossa própria condição ser pensante.

sources:


  1. https://www.publico.pt/2006/07/09/jornal/inteligencia-artificial-faz-50-anos-87953 ↩︎

  2. Turing, Alan M. 1950. “Computing Machinery and Intelligence.” Mind 59 (October): 433–60. https://doi.org/10.1093/mind/lix.236.433↩︎

  3. “Robots from the Land of OZ.” 2007. October 4, 2007. https://web.archive.org/web/20071004033333/http://www.bigredhair.com/robots/oz.html↩︎

  4. Glymour, G., 1992, Thinking Things Through, Cambridge, MA: MIT Press, p. 33-61. ↩︎

  5. Descartes, 1637, R., in Haldane, E. and Ross, G.R.T., translators, 1911, The Philosophical Works of Descartes, Volume 1, Cambridge, UK: Cambridge University, pág. 116. ↩︎

  6. Searle, John R. 1980. “Minds, Brains, and Programs.” Behavioral and Brain Sciences 3 (3): 417–24. https://doi.org/10.1017/S0140525X00005756↩︎

  7. Estanqueiro, Mário Vidigal e Alberto Antunes António. 2000. Dicionário Breve de Filosofia. Editorial Presença. ↩︎

  8. “Research Priorities for Robust and Beneficial Artificial Intelligence: An Open Letter.” n.d. Future of Life Institute (blog). Accessed December 22, 2022. https://futureoflife.org/open-letter/ai-open-letter/↩︎

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